terça-feira, 13 de maio de 2014

Cegueira

Aquele dia acordou cinzento escuro. Joel já sabia de cor o caminho para o banco onde ficava sentado horas a fio. Mal transpôs a porta sentiu que a humidade se lhe entranhava nos ossos tolhendo-lhe os movimentos. Era um frio suportável mas que se agarra ao corpo como uma carraça. Inspirou fundo deixando o ar preencher-lhe os pulmões asfixiados com o ar saturado da casa. Caminhou com a bengala branca a guiá-lo apesar de já saber perfeitamente para onde ia. Ser cego era algo que o entristecia pois não podia apreciar verdadeiramente o espectáculo do mundo. Nada podia fazer para contrariar esse facto mas a revolta interior que sentia tornava-o rude e distante.Não falava com ninguém. A irmã que o ajudava era apenas uma presença física. Não havia mais que uns monossílabos disparados á velocidade das balas. Catarina sentia-se torturada por esta amargura do irmão.
Joel avançou para o banco onde se sentou calmamente. Ficou a matutar na sua infelicidade. Agarrava-se ao negativismo envolvendo-o num abraço estranho e quase macabro. Nunca sorria. Apesar de aquele ser um alegre jardim citadino onde algumas brincavam sob o olhar por vezes descuidado dos pais. Todas as crianças sabiam que não deveriam importunar o Sr. Joel.
A rebeldia, contudo, é comum a todas as crianças. Umas manisfestam-na mais do que outras mas todas têm uma tendência para desobedecer a regras pré-estabelecidas. Rafael cuja vivacidade era mais expressiva sentou-se junto do terrível Sr. Joel. O coração pulsava-lhe tão acelaradamente tal era a curiosidade que sentia.
- Olá - expirou por fim Rafael aterrado.
- Que é que estás aí a fazer? - perguntou abruptamente Joel apercebendo-se que era uma criança que estava ao seu lado.
- Quero falar contigo - respondeu Rafael.
- Mas tu não vês que eu sou um inútil?
- O que é isso?
Rafael vacilou. Queria ir embora mas já tinha tido a coragem de meter coragem com aquele senhor tão malévolo.
- Criança escuta: eu sou cego. Não valho nada. Ninguém gosta de mim.
- Porque és mau?
Joel ficou espantado com o atrevimento da criança. Pensou que só uma criança poderia ser tão sincera. Deu pelas suas paredes mais duras a quebrarem-se pela coragem guerreira daquele miúdo que não deveria ter mais de dez anos.
- Eu não sou mau - disse um Joel mais calmo.
- Então porque é que ninguém gosta de ti?
Estava vencido. Joel sabia que aquele seria o seu melhor momento nos quase quarenta anos que levava de vida.
- Porque eu não deixo.
-Não deixas porquê?
- Eu explico-te se me disseres o teu nome.
- Rafael.
- Rafael, eu não deixo que gostem de mim porque as pessoas confundem gostar com pena. Eu quero que gostem de mim não que tenham pena por eu ser cego.
- Mas...
- Mas nada, Rafael. Se eu aceitasse a pena deles nunca seria feliz.
- E és?
- Não, não sou. Sou um estranho aqui. Aprende uma coisa rapaz: quando tu és bom as pessoas aproveitam-se de ti. Exploram os teus pontos fracos. Sabem que tu dás de coração mas insistem em magoar-te. A felicidade provoca invejas e a inveja só trás mágoas. As pessoas que tu mais gostas são sempre as que te vão magoar mais. A tua missão é saber quais são as que te magoaram para teu bem e as que te magoaram pelo prazer que lhes deu. As pessoas que gostam de nós também nos magoam mas por vezes precisamos ser magoados para crescermos mais fortes. Pode-te parecer confuso e não perceberes o que te estou a dizer mas acredita que nunca devemos ser bons demais. Ou melhor, devemos ser mas apenas para aqueles que já nos provaram que merecem essa bondade.
Rafael acenou compreendendo. Joel continuou.
- Rafael eu sou um cego e sinto-me torturado por mim mesmo. Vou-te dar um conselho: ama quem te ama. Mas quando o fizeres é bom que tenhas certezas. Não deixes que o teu coração fale mais alto. Mistura inteligência e intuição de forma a que as poucas mágoas que tiveres venham de pessoas que saibam que é isso o melhor para ti. A verdade dos nossos amigos tem mesmo de ser assim cruel e firme para nos magoar mas de forma a que possamos recuperar. Agora as pessoas que tu pensas que gostas mas que não é recíproco, essas sim magoam-nos para sempre. Poderás até deixar de confiar nas pessoas.
- A minha mãe está-me a chamar. Tenho de ir embora.
Rafael levantou-se e começou a caminhar a medo em direcção á mãe.
- Rafael - chamou Joel.
- Sim.
- Sê tu próprio. Lembra-te: nunca deixes de ser bom para quem o merece mas não deixes que ninguém abuse. Aprende com erros e fortalece-te. Faz da tua vida uma aventura extraordinária.
Joel expressou o que há muito lhe ia na mente. Já Rafael correu para a mãe com a clara sensação de aquela conversa era importante e ninguém lhe ia ensinar aquilo numa escola. Mas também não lhe chegava aquela conversa, tinha de viver. "Mas para já vou brincar" foi o que pensou.

 

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Rei

Sinto aquele vazio triste que me derruba. Procuro algo que me preencha. Mas o que me preenche acarreta ainda mais malefícios. Deixo que o vazio fique ou expulso-o ficando a matar-me com a lentidão com que um fumador se mata? Não morro agora mas fico a apodrecer como fruta abandonada num terreno baldio. Fui feito para amar e não para ser amado. Talvez o meu erro seja procurar princesas. Só existem as dos contos e nem essas são perfeitas. Deveria aprender a lição. Deveria voltar para essa escola imaginária onde me ensinam como somar as partes, subtrair os sofrimentos e dividir as felicidades. Sou tão simples que até causa aflição. Sinto-me quase um inútil, desadaptado... Mas vou caminhando em direcção a alguém. De uma coisa já me convenci: não vale a pena ir atrás de princesas. Até porque eu não sou um príncipe. Sou um rei.

"Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio."