A partir de um auto-retrato de José Cardoso Pires.
Fumar ao espelho, solidão dobrada. Enquanto aspiro o fumo e carbonizo um pulmão já bastante dilacerado, revivo tudo o que me apetece. Embora tudo seja turvo, talvez por causa do fumo que invade o espaço, nada me alegra ou entristece mais. Recuo a um passado por vezes tão presente. Entre uma passa e outra aprendo um pouco. Descubro que sou mais infinito que o fumo que se dissipa ao misturar-se com o ar puro que estou a poluir. Provoco em mim uma morte lenta mas, também, vivo de novo. Vício tão desagradavelmente satisfatório. Espero que o pulmão resista a esta actividade cerebral que me é tão querida. É na solidão deste cigarro que encontro todos os caminhos onde queria voltar a percorrer. Olho o espelho e vejo uma face em mudança por entre o nevoeiro por mim provocado. Penso: se este cigarro se apaga será que as minhas memórias desaparecem? Se deixar de fumar será que me torno amnésico?
Quando este cigarro acabar, volto ao doloroso presente. E tentarei acumular mais memórias para as reviver diante deste espelho enquanto condeno os pulmões a prisão perpétua.
Quando este cigarro acabar, volto ao doloroso presente. E tentarei acumular mais memórias para as reviver diante deste espelho enquanto condeno os pulmões a prisão perpétua.

