domingo, 7 de novembro de 2010

O Beijo

Abri a porta de casa. Chegou ao meu nariz o teu aroma doce, inebriante e fresco. Estavas sentada talvez meditando. A minha presença surpreendeu-te. Olhei no teu rosto, todos os traços alinhados e a expressão conquistadora que sempre tiveste. De súbito, abres um sorriso brilhante e sedutor. Irresistível. Abraço-te e sinto que a conexão entre nós é mágica, inexplicável e ainda assim majestosa e encantadora. Beijo-te pela primeira vez. O suave sabor a mel, menta e morango invade-me a boca, sinto a tua língua suave a invadir-me, o calor a ruborizar-me a face. Não quero desprender este beijo de amor. Ficaria por três dias, suspenso num gesto simples mas muitas vezes banalizado. Um beijo quente, molhado e longo satisfaz a minha parca necessidade de carinho momentâneo. Desprendo lentamente os lábios. Os teus ficam como que orvalhados, rosados e desejosos por mais. Deixo-me prender outra vez. Mergulho numa espiral de fome desse teu amor e anseio para que este beijo nunca acabe. Puxo-te para mim e ficamos assim neste caloroso momento até que ambos estejamos saciados.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O Rapaz da Fotografia

Era uma vez, num país muito distante em que a fotografia era a grande actividade, um rapaz que era pobre e que não tinha máquina fotográfica. Sentia-se triste pois não conseguia fotografar como todos os outros. Tinha experimentado uma vez e agora sentia uma paixão que o consumia no seu interior. Vagueava pelas ruas e via os flashes em toda a parte. Correu para o sítio mais isolado que encontrou. Era de uma beleza magnífica e desejou ter só por um minuto, uma máquina para guardar aquele momento. Nesse instante e como que por magia viu algo no chão. Era algo esquisito parecido com uma máquina fotográfica. Pensou “para estar aqui nem sequer deve funcionar”. Experimentou e o resultado foi surpreendente. Tinha finalmente uma máquina e podia fotografar o que lhe apetecesse. Fotografou até anoitecer e acabou por adormecer exausto. Os pais preocupados procuraram-no por todo o lado mas sem sucesso. Choraram, gritaram, sofreram. Foi uma noite em claro. Pela manhã, surge o rapaz de um local ermo com uma felicidade estampada no rosto.
- Meu filho, por onde andaste? – inquiriu o pai com o seu olhar já mais aliviado.
- Andei perdido no mundo mágico da fotografia.
- Onde fica isso?
- Não sei, cheguei lá porque desejava muito fotografar e o meu íntimo conduziu-me lá.
- Nós estávamos tão preocupados. Porque voltas-te tão tarde?
- Pai, foi o dia mais lindo da minha vida. Foi simplesmente fantástico… senti-me completo… senti… que o amanhã não chegaria.
- Está bem. Mas não voltes a repetir por favor.
- Achei esta máquina e tirei imensas fotografias – disse o jovem cheio de alegria.
- Mas, meu filho, a máquina não é tua. Receio que a vás ter que devolver.
- Não quero. Eu encontrei-a. Se o dono sentisse a falta dela já a teria procurado. Aliás, nem sequer a teria perdido.
- Deixo-te ficar com ela mas mesmo assim acho que a devias devolver.
O rapaz decidiu ficar com a máquina e continuou a fotografar tudo o que sempre desejou. Falta referir que a dita máquina era de um sistema digital, não tinha rolo e tirava mais fotografias que as mais avançadas máquinas que existiam no país. Passaram alguns dias sempre a um ritmo alucinante. Até que sem que nada o fizesse prever o rapaz abeirou-se do pai e disse:
- Pai, não quero a máquina. Onde é que a posso entregar?
- Não a queres?
- Não.
- Então vamos revelar essas fotografias e depois devolvemo-la. Pode ser?
- Não quero as fotografias.
- Mas que se passa?
- Pai, eu sempre fui pobre. Nunca tive uma máquina. Habituei-me a tirar fotografias com a minha mente. Apesar dos últimos dias terem sido fabulosos eu prefiro como era antes. Assim, a imagem fica guardada na minha cabeça e eu posso mudá-la se isso me fizer mais feliz. Cada um faz fotografia à sua maneira e eu já encontrei a minha.
Deixou a máquina na mão do pai e partiu sem sequer olhar para trás.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Danças com Lobos

Silêncio profundo. Ouve-se por entre este silêncio o sussurrar da Natureza. O escuro cobre tudo o que existe em volta. Uivos de lobos famintos ecoam nos ouvidos já ambientados ao sossego da Natureza. O que faz um homem ter vontade de voltar ao seu estado selvagem, estar solitário sem qualquer conexão com o mundo citadino? Estar assim, entre florestas densas e animais selvagens, revela ao homem novos mundos. Por vezes, a melhor forma de encontrar alguém é estando sozinho. Estamos a descobrir-nos a nós mesmos. Citando Thoreau: “Fui para os bosques para viver livremente. / Queria viver plenamente e sugar o tutano da vida! / Para aniquilar tudo o que não era vida / E para, quando morrer, não descobrir que não vivi.”. No contacto com o natural e à medida que se afasta do mundo urbano, o homem começa a sentir-se pleno, completo e a ser mais ele próprio. Ao início, a comunicação não é fácil. Na Natureza a nossa linguagem é completamente inútil. A língua passa a ser muda e feita apenas de observação. Paisagens tão belas como a mulher mais bela penetram na íris ocular provocando um efeito fascinante. E o lobo aproxima-se. O homem começa a ouvi-lo uivar e olha-o amistosamente. O lobo vê então no homem um selvagem como ele mas que vive sem problemas, sem pensar num mundo onde o dinheiro é a maior riqueza e onde existem animais mais ferozes que ele próprio. Pergunta o lobo: “Que estará aqui a fazer este homem?”. Não sabe, mas vai descobrir. O homem fugiu duma prisão sem correntes nem gradeados mas de liberdade limitada. Agora é livre, completamente livre…

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Olhar de Blimunda


José Saramago criou Blimunda. E Blimunda criou um mundo mágico e misterioso. Blimunda é uma estranha vidente que, em jejum, vê o que existe dentro das pessoas, através dos corpos ou no interior da terra. É ela que recolhe as “vontades” para que a passarola do padre Bartolomeu possa voar. Este poder oferece a Blimunda a possibilidade de ver e conhecer melhor o mundo e tudo o que o sustenta. O seu olhar via “vontades”. E quantos de nós possuem essa vontade de voar e fugir dum mundo de tristeza e medos? Mas essa vontade não é visível aos olhares comuns o que torna Blimunda num enigma que nem a própria pode explicar. Magia e fantasia de mãos dadas com um olhar transparente, clarividente e que vê tudo nas madrugadas jejuadas. Provavelmente, todos gostaríamos de ver dentro dos outros, tal como Blimunda Sete-Luas. Assim, era fácil identificar enganos e falsas promessas, reconhecer verdades e mentiras, sentir sentimentos que ecoam no interior de outra pessoa. Seria também possível e agradável poder ver como é o verdadeiro amor e o que ele faz no nosso interior. Contudo, Blimunda recusou-se ver dentro de Baltasar, seu verdadeiro amor. Ela sabia, tal como todos nós, que o verdadeiro amor é cego. Não se pode ver esse amor com os olhos, apenas senti-lo na boca, nos arrepios corporais que estremecem o corpo trepidante de desejo. É um amor silencioso que apenas é sensível ao toque. Por isso, o amor de Baltasar e Blimunda nunca precisou de palavras de amor porque, tanto um como o outro, sabiam que se amavam. E isso bastava-lhes.